O chão de linóleo, uma escultura em forma de nuvem, um piano. Cheguei desavisada - não conhecia a artista – e, num Google rápido que dei, já na fila de entrada do Lafayette Anticipations aqui em Paris, descobri que ela tinha coreografado um clipe do Justin Bieber. O público se sentou no chão e em cadeiras espalhadas ao redor da cena. Primeiro entrou o pianista, Guillaume Ferran, e logo na sequência a dançarina, Emma Portner. Ela usava um vestidinho branco, sapatilhas com meias pretas, e começou a dançar bem próxima ao público. Dava para sentir o cheiro do shampoo no cabelo preso.
Eu fico sempre atenta às sensações que essa proximidade do corpo do artista com o corpo do público pode causar. Constrangimento, solenidade, fetiche. Fiquei esperando se alguma fragilidade brotaria dela — da consciência de que estávamos analisando cada um dos seus movimentos tão de perto. Mas ela seguia concentrada, presente, inteira.
Eu ainda estava entretida nesse pensamento quando ela caminhou em direção ao piano e começou a dançar no colo do pianista. Não consigo muito bem explicar o que vi ali — nem no momento seguinte, em que ela incorpora o sapato à coreografia, nem no outro, quando interage com a pele da nuvem. Uma mistura de infância, vida adulta e velhice.
Demorei para entender o que tinha me tocado tanto naquela apresentação, que durou pouco mais de meia hora. A coreografia, a música, a nuvem. Foi bonito, poético, bem-feito. Mas não era isso. Gravei os stories que ela postou para poder reassistir, procurei o álbum do pianista no Spotify. Fiquei com aquilo no corpo.
Eu só encontrei a explicação que queria alguns dias depois, enquanto lia a entrevista de Susan Sontag para a Rolling Stone, recém-publicada pela Bazar do Tempo. Fico sempre maravilhada com o comprometimento que Susan Sontag tem com o pensamento.
O comprometimento. É isso!
O que me atravessou na performance de Emma Portner foi seu comprometimento com a dança, com a arte. Um comprometimento inegociável. Um comprometimento no qual convivem passado, presente e futuro. Um comprometimento feito de pesquisa profunda e séria, brincadeira e jogo. Ela era uma anciã executando cada um daqueles gestos. Ela era uma criança, encantada com cada um dos movimentos. Ela era uma mulher, adulta, comprometida com seu ofício.
Fiquei com a sensação de que, com a mesma intensidade com que respeita e aprende com quem veio antes (vi muito do Judson Dance Theater ali), ela finca os pés no presente e celebra o mundo ao seu redor. Filha de seu tempo, abre uma estrada na qual é possível dançar em direção ao futuro. É raro, árduo e mágico alcançar esse tipo de comprometimento - com qualquer atividade que seja.
Susan Sontag, obsessivamente comprometida com o que coloca no mundo, lista em seus diários as obras e autores que precisa ler para construir seu repertório, para firmar seu compromisso com o pensamento, se constituir. Ela reverencia, aprende, respeita a história. Mas não para por ali. Na entrevista que citei, ela diz:
“O que eu quero é estar completamente presente na minha vida – estar onde estou, contemporânea a mim mesma na minha vida, dando atenção total ao mundo, que inclui a mim. Eu não sou o mundo, e o mundo não é idêntico a mim, mas estou nele e prestando atenção nele. É isso que um escritor faz: ele presta atenção no mundo.”
Não à toa o título da performance de Emma Portner era “Meus solos eram como orações”. O comprometimento com a arte, com a sua vida, é sim um tipo de oração.
Boa semana!
Bjs, Vivi.
Vou deixar aqui o álbum do Guillaume Ferran com algumas das peças tocadas na performance:
Me deu ainda mais vontade de estar mais presente na vida! ✨
Comprometimento é o segredo. Obrigada Vivi!